"VAQUINHA", COMPORTAMENTO DA PLEBE ("O inferno são os outros." Autor: Jean-Paul Sartre)
Há certos lugares onde o tempo não corre — ele escorre, denso como melado. Um deles é a sala dos professores, especialmente às vésperas de alguma confraternização improvisada. É nesse território fértil em tensões latentes que o profissionalismo e o improviso dividem a mesma garrafa de café, enquanto circulam planilhas, bilhetes, cobranças disfarçadas de convites e, inevitavelmente, as famigeradas "vaquinhas".
Nesse ambiente, onde títulos e pós-graduações às vezes parecem mais armaduras do que credenciais, já vi quase de tudo: alianças forjadas entre goles de suco industrializado, discussões acaloradas por causa de um pão de queijo amanhecido e até filosofias de vida sendo esmagadas sob o peso simbólico de uma coxinha morna. Acreditamos numa certa nobreza do nosso ofício, numa "privilegiada vocação", como alguns diriam, que nos deveria garantir um respeito quase tácito. Contudo, o cotidiano insiste em mostrar que a distância entre o ideal e o real pode ser abissal.
E o que vi naquela tarde específica, confesso, ainda me causa certo arrepio. Era para ser apenas mais uma coleta — dessas que surgem sorrateiras: “Dez reais por cabeça, pessoal, só pra gente não passar em branco o aniversário da diretora” Ninguém quer ser o estraga-prazeres, o avesso à festa, o voto vencido na democracia forçada do congraçamento. Mas bastou uma negativa, ou talvez um questionamento sobre o modo como a cobrança foi feita, para que o chão da sala parecesse tremer. Um colega, de língua tão afiada quanto suas credenciais acadêmicas, disparou impropérios contra o coordenador como quem atira pedras numa vidraça frágil. Palavras de uma vileza inesperada, que rasgaram o ar e o decoro.
Do outro lado, o coordenador, com o rosto pálido e as mãos visivelmente trêmulas, tentava manter a compostura enquanto devolvia a pequena quantia ofensora. A tensão era palpável, quase sólida — a ponto de parecer que o bolo de cenoura com cobertura de chocolate, já repousando sacrificialmente sobre a mesa, começava a derreter de pura vergonha alheia. O escândalo, claro, esvaziou o propósito da comemoração antes mesmo que ela começasse. E o professor em questão saiu dali não com a cauda entre as pernas, mas pisando faceiro, como quem venceu uma batalha crucial que ninguém mais sabia estar sendo travada. A celeuma estava, ruidosamente, estabelecida.
É curioso — e um tanto desolador — como certos gestos, às vezes pequenos, às vezes coléricos como aquele, revelam fraturas muito maiores sob a superfície do coleguismo. Há dias em que todos os certificados emoldurados e os anos de experiência não bastam para conter a vaidade ferida ou a mais pura e simples grosseria. E a gente se pergunta: quando foi que a educação, esse espaço que deveria ser de exemplo, virou também essa arena de egos onde se discute mais o recheio do bolo do que o conteúdo do quadro-negro? Onde a oposição e as ofensas tomam o lugar dos bons costumes e da ética que tanto pregamos?
Não tenho a resposta. Mas sei, por experiência própria, o desconforto que essas situações geram. Quantas vezes já me senti sutilmente coagido a contribuir, mesmo deixando claro que não participaria do lanche? Não por avareza, mas por uma escolha pessoal — talvez até por um princípio aprendido sobre hábitos alimentares, que me distancia dessa necessidade de transformar cada reunião num pequeno banquete fora de hora. Prefiro não comer no ambiente de trabalho. Não vejo sentido em mastigar entre uma correção e um planejamento.
E, por essa recusa, já me olharam torto. Já me senti vilipendiado por comentários constrangedores e desnecessários ao me negar a pagar pelo pão de queijo quentinho que não provaria. Já disseram que pareço distante — e talvez eu seja mesmo, desse costume peculiar de usar a comida como termômetro de simpatia e integração. Há quem veja nesses gestos de partilha forçada um elo comunitário essencial. Eu, muitas vezes, vejo apenas uma cortina de fumaça — uma pressão por conformidade que ignora o bom senso e as vontades individuais. Porque, se o vínculo profissional e humano é real, ele deveria resistir bravamente à ausência de salgadinhos e refrigerantes.
Lembro-me também do dia em que uma funcionária da limpeza, que raramente me dirige um cumprimento formal, entrou na minha sala sem bater, interrompendo a aula, pedindo “uma ajudinha com o refrigerante” para a festa de despedida da coordenadora. Uma súbita demonstração de interesse na “integração das funções”, conveniente apenas no momento da coleta. Eu sequer havia sido formalmente informado da festa. Disse não, com a gentileza possível naquela situação abrupta. Ela não respondeu — apenas me lançou um olhar que misturava desprezo e surpresa, como se minha negativa fosse um crime contra a própria instituição. Mas, não era. Era apenas o exercício de um limite pessoal, o direito de dizer não sem precisar me justificar longamente.
Hoje, olhando para trás, percebo que aquela tarde de estalos verbais e mãos trêmulas, assim como as pressões cotidianas por contribuições e participações, foi muito mais que um episódio infeliz: foi, e é, um sintoma. A escola, quando se esquece de seu papel primordialmente formativo e passa a operar segundo as leis não escritas da popularidade, da pressão de grupo e do melindre, adoece.
E doente ela está — quando a grosseria é disfarçada de sinceridade; quando a escolha individual vira motivo de chacota ou exclusão; quando a recusa educada é interpretada como insubordinação ou falta de espírito de equipe. Não há festa, por mais bem-intencionada que seja na superfície, capaz de adoçar esse amargor que fica no ar.
Por isso, talvez, escrevo sobre isso. Porque acredito que, ainda que muitos falem de união e coleguismo, poucos realmente os praticam no respeito às diferenças e aos limites alheios. E talvez tenhamos, de fato, nos acostumado demais ao barulho dos talheres e das conversas obrigatórias — e desaprendido a valorizar o silêncio respeitoso que deveria ser a base de qualquer convivência minimamente civilizada.
Não sou, de forma alguma, contra a celebração ou a gentileza. Mas, prefiro aquelas que nascem do afeto sincero e da vontade genuína — e não da obrigação disfarçada, da pressão velada ou do interesse momentâneo. Entre um pedaço de bolo imposto e um gesto de respeito espontâneo, fico sempre com o segundo. Porque este sim, alimenta de verdade a alma e dignifica nossas relações.
Olá! Como seu professor de sociologia, preparei 5 questões discursivas simples com base nas ideias principais do texto:
1. O texto descreve a sala dos professores como um lugar onde "o profissionalismo e o improviso dividem a mesma garrafa de café". Explique essa metáfora, utilizando exemplos do texto para ilustrar a tensão entre o esperado no ambiente profissional e as situações informais e, por vezes, problemáticas que ocorrem.
2. O autor questiona se a educação, "esse espaço que deveria ser de exemplo", transformou-se em uma "arena de egos". Quais exemplos do texto sustentam essa crítica? Em sua opinião, como as dinâmicas de poder e as relações interpessoais podem impactar o ambiente de trabalho em instituições educacionais?
3. O texto aborda a questão das "vaquinhas" e das contribuições para eventos como um ponto de tensão. Analise, sob uma perspectiva sociológica, como as pressões de grupo e a necessidade de conformidade podem influenciar as decisões individuais em um ambiente profissional. Utilize o exemplo da recusa do autor em participar do lanche para fundamentar sua resposta.
4. O autor relata dois episódios específicos envolvendo a coleta de dinheiro: um para o aniversário da diretora e outro para a despedida da coordenadora. Compare esses dois eventos, identificando as dinâmicas sociais e as diferentes formas de pressão ou constrangimento presentes em cada situação. O que esses episódios revelam sobre as relações hierárquicas e a "integração" no ambiente escolar?
5. Na conclusão do texto, o autor reflete sobre a importância do respeito às diferenças e aos limites alheios em contraposição a uma "união e coleguismo" superficiais. Como você interpreta essa reflexão à luz dos eventos narrados ao longo do texto? De que maneira a valorização do "silêncio respeitoso" poderia contribuir para um ambiente de trabalho mais saudável e ético?