A Pipa e o Fio Cortante da Vida ("Enquanto você está correndo atrás de pipa, outro tá passando cerol na sua namorada." — Beatriz Cordeiro)
Por essa época, em julho, o vento forte e as férias escolares compõem o cenário perfeito para a molecada correr pelas ruas, com o rosto voltado para o alto — no sentido literal e metafórico.
Não é raro flagrar um “molecão” (que, duvido, ainda seja menor) equilibrado sobre um muro, gritando em puro êxtase de disputa: “não tora, não tora ... a minha rabiola”, enquanto os concorrentes se enroscam na rabiola da raia dele. Pelo prazer da extravagância, invadem chácaras, quintais baldios e casas de família, atiçando os cachorros que latem sem descanso.
Essa molecagem, porém, revela algo mais grave: a erotização precoce, aprendida em filmes, novelas e até desenhos, foi transferida para o lazer e transformada em fonte de prazer físico e psicológico — sem pudor no uso da linguagem chula e de duplo sentido.
Mas essa erotização é apenas um sintoma. O problema mais profundo é que a infância foi colonizada pela lógica da competição e do desejo de poder. O prazer de vencer o outro — de derrubá-lo, humilhá-lo — substituiu o encanto de brincar junto. A pipa, antes símbolo de liberdade, passou a representar o instinto de domínio. O cerol, afiado e invisível, tornou-se metáfora dessa cultura de corte, onde a vitória exige o aniquilamento do outro.
A rua, que já foi extensão da imaginação, virou campo de batalha simbólico: ali se ensina que ser agressivo é ser viril. E assim, do fio que corta o vento, nasce o fio que corta vidas — num país que confunde esperteza com coragem.
Também fui criança, mas minhas brincadeiras não incomodavam ninguém, tampouco me prejudicavam. Como era saudável a simplicidade da vida no interior!
Hoje, nas grandes cidades, por trás de uma simples “raia”, pode esconder-se um vadio brincando de cortar o pescoço de um motoqueiro trabalhador. A maldade dos pais se projeta nos filhos “até a terceira geração”! Que tipo de sociedade teremos quando o mal praticado pelos filhos de hoje se refletir no sofrimento dos pais que falharam em educar? Não seria essa uma punição mais do que divina — uma consequência social inevitável?
É assim que se perpetua essa pequena guerra, em que um corta o fio da vida do outro com o cerol afiado do falso diamante — apenas caco de vidro moído. Quem tem a vida moída também não tem nada a perder, e essa é a pessoa mais perigosa.
Foi assim que, numa conversa descontraída em sala de aula, um professor idoso dirigiu-se a uma turma do terceiro ano do Ensino Médio e, em tom de brincadeira, disse que “a pipa do vovô não sobe mais”. Então, uma aluna evangélica o denunciou — e o professor foi penalizado.
Findo aqui, fazendo minhas as palavras de Alexander Pope: “Um pouco de cultura é uma coisa perigosa.”
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É um prazer imenso discutir este texto tão rico em observações sociais. Como vimos, eu faço uma crítica profunda à forma como a infância, a competição e a moralidade se transformaram no contexto urbano, usando a pipa como um poderoso símbolo. Para a nossa atividade discursiva, preparei cinco questões simples. Lembrem-se de usar as ideias do texto para formular suas respostas, demonstrando a compreensão dos conceitos sociológicos de socialização, cultura, e desigualdade.
1. Cultura e Transformação Social (Rural vs. Urbano)
O autor idealiza a "simplicidade da vida no interior" em contraste com a agressividade das "grandes cidades". Com base no texto, explique como a mudança de ambiente (rural para urbano) alterou a natureza do lazer infantil, indicando quais valores socioculturais o autor considera ter sido perdidos ou corrompidos.
2. Socialização e Mídia
O texto afirma que a infância foi "colonizada pela lógica da competição e do desejo de poder", além de sofrer influência da "erotização precoce" vinda da mídia. De que forma os agentes de socialização contemporâneos (mídia, família e a própria rua) contribuem para que a cooperação no brincar seja substituída pelo instinto de domínio e aniquilamento do outro?
3. Símbolo e Desigualdade Social
O cerol é apresentado como o "falso diamante", um instrumento de corte usado contra o "motoqueiro trabalhador". Analise o cerol como um símbolo dessa "cultura de corte". Além disso, comente a afirmação "Quem tem a vida moída também não tem nada a perder" à luz dos conceitos de anomia e desigualdade social.
4. Valores Familiares e Consequências Geracionais
O autor expressa que a "maldade dos pais se projeta nos filhos 'até a terceira geração'", questionando se a punição aos pais que falham na educação não seria uma "consequência social inevitável". Discuta a responsabilidade familiar e a transmissão de valores (ou a ausência deles) entre gerações, focando na ideia de que a descontinuação da "guerrinha" depende de uma mudança no ciclo de socialização primária.
5. Cultura, Contexto e Conflito Social
A citação de Alexander Pope, "Um pouco de cultura é uma coisa perigosa", e a anedota final sobre o professor penalizado levantam um debate sobre a interpretação cultural e o contexto. Explique, a partir de uma perspectiva sociológica, em que medida a rigidez na interpretação de expressões culturais (ou a ignorância de seus contextos) pode gerar conflitos, polarização e punições dentro de um ambiente social.
Por essa época, em julho, o vento forte e as férias escolares compõem o cenário perfeito para a molecada correr pelas ruas, com o rosto voltado para o alto — no sentido literal e metafórico.
Não é raro flagrar um “molecão” (que, duvido, ainda seja menor) equilibrado sobre um muro, gritando em puro êxtase de disputa: “não tora, não tora ... a minha rabiola”, enquanto os concorrentes se enroscam na rabiola da raia dele. Pelo prazer da extravagância, invadem chácaras, quintais baldios e casas de família, atiçando os cachorros que latem sem descanso.
Essa molecagem, porém, revela algo mais grave: a erotização precoce, aprendida em filmes, novelas e até desenhos, foi transferida para o lazer e transformada em fonte de prazer físico e psicológico — sem pudor no uso da linguagem chula e de duplo sentido.
Mas essa erotização é apenas um sintoma. O problema mais profundo é que a infância foi colonizada pela lógica da competição e do desejo de poder. O prazer de vencer o outro — de derrubá-lo, humilhá-lo — substituiu o encanto de brincar junto. A pipa, antes símbolo de liberdade, passou a representar o instinto de domínio. O cerol, afiado e invisível, tornou-se metáfora dessa cultura de corte, onde a vitória exige o aniquilamento do outro.
A rua, que já foi extensão da imaginação, virou campo de batalha simbólico: ali se ensina que ser agressivo é ser viril. E assim, do fio que corta o vento, nasce o fio que corta vidas — num país que confunde esperteza com coragem.
Também fui criança, mas minhas brincadeiras não incomodavam ninguém, tampouco me prejudicavam. Como era saudável a simplicidade da vida no interior!
Hoje, nas grandes cidades, por trás de uma simples “raia”, pode esconder-se um vadio brincando de cortar o pescoço de um motoqueiro trabalhador. A maldade dos pais se projeta nos filhos “até a terceira geração”! Que tipo de sociedade teremos quando o mal praticado pelos filhos de hoje se refletir no sofrimento dos pais que falharam em educar? Não seria essa uma punição mais do que divina — uma consequência social inevitável?
É assim que se perpetua essa pequena guerra, em que um corta o fio da vida do outro com o cerol afiado do falso diamante — apenas caco de vidro moído. Quem tem a vida moída também não tem nada a perder, e essa é a pessoa mais perigosa.
Foi assim que, numa conversa descontraída em sala de aula, um professor idoso dirigiu-se a uma turma do terceiro ano do Ensino Médio e, em tom de brincadeira, disse que “a pipa do vovô não sobe mais”. Então, uma aluna evangélica o denunciou — e o professor foi penalizado.
Findo aqui, fazendo minhas as palavras de Alexander Pope: “Um pouco de cultura é uma coisa perigosa.”
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É um prazer imenso discutir este texto tão rico em observações sociais. Como vimos, eu faço uma crítica profunda à forma como a infância, a competição e a moralidade se transformaram no contexto urbano, usando a pipa como um poderoso símbolo. Para a nossa atividade discursiva, preparei cinco questões simples. Lembrem-se de usar as ideias do texto para formular suas respostas, demonstrando a compreensão dos conceitos sociológicos de socialização, cultura, e desigualdade.
1. Cultura e Transformação Social (Rural vs. Urbano)
O autor idealiza a "simplicidade da vida no interior" em contraste com a agressividade das "grandes cidades". Com base no texto, explique como a mudança de ambiente (rural para urbano) alterou a natureza do lazer infantil, indicando quais valores socioculturais o autor considera ter sido perdidos ou corrompidos.
2. Socialização e Mídia
O texto afirma que a infância foi "colonizada pela lógica da competição e do desejo de poder", além de sofrer influência da "erotização precoce" vinda da mídia. De que forma os agentes de socialização contemporâneos (mídia, família e a própria rua) contribuem para que a cooperação no brincar seja substituída pelo instinto de domínio e aniquilamento do outro?
3. Símbolo e Desigualdade Social
O cerol é apresentado como o "falso diamante", um instrumento de corte usado contra o "motoqueiro trabalhador". Analise o cerol como um símbolo dessa "cultura de corte". Além disso, comente a afirmação "Quem tem a vida moída também não tem nada a perder" à luz dos conceitos de anomia e desigualdade social.
4. Valores Familiares e Consequências Geracionais
O autor expressa que a "maldade dos pais se projeta nos filhos 'até a terceira geração'", questionando se a punição aos pais que falham na educação não seria uma "consequência social inevitável". Discuta a responsabilidade familiar e a transmissão de valores (ou a ausência deles) entre gerações, focando na ideia de que a descontinuação da "guerrinha" depende de uma mudança no ciclo de socialização primária.
5. Cultura, Contexto e Conflito Social
A citação de Alexander Pope, "Um pouco de cultura é uma coisa perigosa", e a anedota final sobre o professor penalizado levantam um debate sobre a interpretação cultural e o contexto. Explique, a partir de uma perspectiva sociológica, em que medida a rigidez na interpretação de expressões culturais (ou a ignorância de seus contextos) pode gerar conflitos, polarização e punições dentro de um ambiente social.
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