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MINHAS PÉROLAS

terça-feira, 30 de junho de 2009

A POLÍTICA DA SOBREVIVÊNCIA (Alugam-se crianças a preço de banana!)




Texto

A POLÍTICA DA SOBREVIVÊNCIA ("A miséria é mãe da indústria." — Daniel Defoe)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Chorou-me a alma gotas de hormônio — o hormônio da compaixão. Era exatamente isso que eu sentia.

Naquele sábado, às oito horas da manhã, o transporte coletivo seguia lotado rumo a Goiânia. Na antecatraca, cinco senhoras tumultuavam o compartimento. Como muitas pessoas, elas não haviam comprado suas passagens com antecedência. Eu também estava ali, prensado “como pinto no ovo”, embora a imprudência, nesse caso, não fosse minha; eu tinha passagem, só não conseguia passar.

Infelizmente, elas impediam qualquer acesso ao interior do veículo — e talvez, com um solavanco, ainda coubesse só mais um. Demonstravam até boa vontade, tentando se ajeitar para facilitar a passagem, mas era inútil: o corredor era estreito e, como cada uma carregava um bebê nos braços, ninguém ousava pressioná-las. Além disso, o cheiro nauseabundo, combinado à sujeira de suas vestimentas, nos afastava. Pés descalços e sacolas a tiracolo, tão surradas que pareciam poder ser arrastadas pelo chão sem ressentimento.

Sem entrar nos falatórios típicos dos que têm pressa e se veem impedidos de avançar, direi apenas que precisei reclamar — e até sugerir soluções. Depois de muito custo, consegui girar a “catraca” e seguir até as últimas cadeiras. Mais confortável, no fundo do ônibus, pude observar melhor as cinco senhoras que ainda entulhavam a cabine do motorista. Após uma breve e discreta conferência, decidiram combater um inimigo comum: passar a catraca sem pagar e resolver, de uma vez, aquele impasse.

Continuei observando quando uma movimentação — fruto do amor materno, ou talvez de um instinto de sobrevivência — tomou conta do espaço, chamando a atenção de todos. Uma segurou duas crianças enquanto a colega passava; esta, ao conseguir se arrastar por baixo, retribuiu o favor, permitindo que a outra fizesse o mesmo. As demais preferiram caminhos distintos: pularam a roleta ou se espremeram pela lateral interna do ônibus.

Quando a última atravessou, olhei do fundo da “nave” — e lá estavam todas sentadas nas primeiras cadeiras! Como conseguiram assentos numa fileira só? Que projeto bem elaborado!

De forma discreta, passei a observar as serenas criancinhas nos braços daquelas que pareciam ser suas mães de verdade. Eu duvidava, pois, a olho nu, não se pareciam em nada com suas amparadoras — e, afinal, elas não precisavam saber disso. Uma menina chorou e recebeu uma mamadeira vazia na boquinha. Que mãe é essa? Além disso, todos os bebês tinham praticamente o mesmo tamanho. Que coincidência é essa?

No destino final, todos os estranhos se dispersam. Refiro-me não apenas ao desembarque daquela tripulação heterogênea que chegara ao seu alvo, mas também à dissolução simbólica dos distintos em algum ponto do etéreo — se é que os opostos realmente se atraem.

No dia seguinte, encontrei uma daquelas senhoras na feira de domingo em Senador Canedo, pedindo esmola. Observei bem: a criança que ela carregava não era a mesma do ônibus. Não dei um centavo, mas esperei que outros dessem, na mesma fé daqueles que, no dia anterior, haviam cedido seus assentos. Com nada menos que um bom projeto, faz-se a política da sobrevivência.

Neste Brasil inescrupuloso, as crianças são usadas para assegurar casamentos e, muitas vezes, até para evitar longas filas no comércio. Também servem como peças valiosas nos depósitos públicos educacionais — as chamadas Escolas de Tempo Integral — criadas para arrecadar mais dinheiro do FNDE. Isso não está escrito no ECA!


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QUESTÕES DISCURSIVAS - "A Política da Sobrevivência"

Questão 1 - Desigualdade Social e Mobilidade Urbana

O texto apresenta uma cena cotidiana no transporte coletivo envolvendo cinco senhoras em situação de vulnerabilidade. Explique como essa situação reflete as desigualdades sociais presentes no Brasil e de que forma o acesso (ou a falta dele) ao transporte público pode aprofundar essas desigualdades.

Questão 2 - Estratégias de Sobrevivência

O narrador descreve as ações das senhoras como uma "política da sobrevivência". O que você entende por essa expressão? Dê exemplos, baseados no texto, de como pessoas em situação de pobreza precisam criar estratégias para garantir sua sobrevivência diária.

Questão 3 - Instrumentalização de Crianças

No final do texto, o autor afirma que "as crianças são usadas" para diversos fins. Explique o que significa "instrumentalizar" crianças e reflita: por que pessoas em situação de extrema necessidade recorrem a esse tipo de prática? Essa prática resolve o problema social de fundo?

Questão 4 - Preconceito e Compaixão

O narrador admite sentir "o hormônio da compaixão", mas também descreve o "cheiro nauseabundo" e a "sujeira" das senhoras, além de não dar esmola no dia seguinte. Analise essa contradição: é possível sentir compaixão e, ao mesmo tempo, manter preconceitos sociais? Justifique sua resposta.

Questão 5 - O Papel do Estado

O texto critica as "Escolas de Tempo Integral" e menciona que crianças são tratadas como "peças valiosas nos depósitos públicos educacionais". Na sua opinião, qual deveria ser o verdadeiro papel do Estado na proteção e educação das crianças em situação de vulnerabilidade? As políticas públicas atuais são suficientes?

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