PROFESSOR VAGABUNDO ("Posso não ser insubstituível, mas sou inalcançável!" Lizandro Rosberg)
*Por Claudeci Ferreira de Andrade
Numa sexta-feira, longe de casa, durante uma aula de Língua Portuguesa, aplicava a proposta pedagógica do dia: buscar, em um quadro de caça-palavras, valores humanos. Todas as palavras ocultas remetiam a atributos de um bom caráter. No entanto, entre gritos e desordem — o comportamento habitual daquela turma de sexto ano —, poucos conseguiram concluir a tarefa. Um dos alunos, absolutamente alheio à atividade, daqueles inquietos e provocadores que não param e perturbam a todos, empurrou algumas colegas para fora da sala, trancou a porta por dentro e, com escárnio, começou a gritar:
— Prossor, prossor, prossor, oia aqui, as mina tá fora da sala!
Aproximei-me dele. Com a voz de quem ainda preservava algum resquício de autoridade, chamei-o de vagabundo e o arrastei dali, puxando-o pelo braço. As meninas voltaram à sala, e ele saiu pisando duro, altivo, lançando ameaças de que me denunciaria à Secretaria de Educação. Na aula seguinte — eram dois períodos seguidos —, uma das meninas, talvez num gesto de gratidão ou solidariedade, mostrou-me a contracapa de um minidicionário escolar que circulava entre eles. Nela estava rabiscado: “Claudeci é viado” (sic).
No recreio, um colega — desses que fomentam a discórdia com prazer — comentou que o “fulaninho de tal” realmente me denunciaria. Outro aluno, querendo me intimidar, emendou:
— E os mininu aqui denuncia mermo!
Naquela aflição, tentei justificar a mim mesmo o uso da palavra “vagabundo”. Lembrei-me do episódio em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em rede nacional, chamou os aposentados de vagabundos. A palavra, então, ganhara um novo contorno, uma inesperada — e irônica — extensão semântica, pois o próprio FHC era um professor aposentado. Como deveriam reagir os aposentados diante de tal adjetivo? E o aluno, dito missionado? Para responder, proponho outra pergunta: quem matou Cristo? Foi o pecado. E não precisava ser o pecado do mundo inteiro. Se houvesse apenas um, ainda assim o Professor dos professores aceitaria a culpa, e esse único pecado já Lhe custaria a vida.
Sou eu o vagabundo que tentou transferir ao aluno a própria incompetência. E, mais do que isso, sou tão vagabundo que tirei tempo do “nada” para escrever esta crônica de autoflagelação — um espelho da minha prática docente. E vejam: já fui lotado em muitas escolas do município! Jogado de cá para lá, e de lá para cá. Não exatamente por ser incompetente, mas por ser vagabundo... talvez por trabalhar com a carga horária mínima.
Mas talvez o que mais assuste não seja o erro em si, e sim a consciência aguda dele — essa ferida que sangra, mas também cura. O que vivi naquele dia não é apenas uma falha isolada, mas o retrato de uma profissão vulnerável, onde cada gesto carrega o peso de décadas de abandono institucional e afetivo. Reconhecer a própria impotência não é um ato de fraqueza, mas de humanidade. E escrever esta crônica é, no fundo, um ato pedagógico: não para me absolver, mas para acender alguma fagulha em quem ainda resiste à indiferença. Se ao menos um educador se enxergar neste espelho e ousar fazer diferente — mesmo de mãos trêmulas —, talvez algo em nós sobreviva à mordida da serpente.
Conta-se a história de um jardineiro, na Índia, que trabalhava no campo quando foi mordido por uma das serpentes mais venenosas do mundo. Ele sabia que não havia antídoto para aquela peçonha. Sabia também que, mesmo que houvesse, não teria tempo de buscá-lo. Em poucos minutos, o veneno atingiria seu sistema nervoso central. Sem hesitar, apoiou o braço no tronco de uma árvore, brandiu o facão e decepou a própria mão. Seus gritos ecoaram pelo campo, e seus companheiros correram para estancar o sangue. Concluíram que sua ação imediata e decisiva salvou-lhe a vida.
O título desta crônica já me pune o suficiente. Mas quem se importa se um professor decepar a própria mão ou perder a moral? Afinal, quando um morre, outro já ocupa, sem alarde, o seu lugar funcional.
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O texto que acabamos de ler nos traz uma narrativa forte e tocante sobre a realidade do dia a dia de um professor. O autor nos leva para dentro de uma sala de aula, nos faz sentir a frustração, a raiva e a reflexão sobre o papel do educador em meio a tantos desafios. Ele aborda não só a indisciplina dos alunos, mas também a própria autoavaliação e a vulnerabilidade da profissão. Para a Sociologia, esse texto é riquíssimo! Ele nos permite discutir temas como instituição escolar, relações de poder na sala de aula, desvalorização docente, violência simbólica, condições de trabalho do professor, e o impacto das políticas educacionais e do contexto social no ambiente escolar. Vamos mergulhar juntos nessas ideias e aprofundar nosso olhar sociológico!
1 - O autor descreve a cena de indisciplina em sala de aula e a sua reação ao chamar o aluno de "vagabundo". A partir da Sociologia, discuta as relações de poder que se estabelecem no ambiente escolar entre professores e alunos. Como a indisciplina pode ser entendida como uma forma de contestação ou expressão de conflitos sociais presentes na escola?
2 - O texto menciona que o professor, ao justificar o uso da palavra "vagabundo", lembra-se de uma fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Analise sociologicamente como o uso da linguagem e de termos como "vagabundo" por figuras de autoridade (seja um professor ou um político) pode carregar conotações sociais e preconceitos, refletindo e reproduzindo estigmas em diferentes contextos.
3 - O autor descreve a profissão docente como "vulnerável" e fala sobre o "abandono institucional e afetivo" que a cerca. Do ponto de vista da Sociologia do Trabalho, quais são as condições de trabalho dos professores na educação básica no Brasil? Discuta como fatores como a baixa remuneração, a violência escolar e a falta de reconhecimento podem impactar a saúde mental e a prática pedagógica desses profissionais.
4 - A crônica toca na ideia de que "quando um morre, outro já ocupa, sem alarde, o seu lugar funcional". Relacione essa afirmação com o conceito de precarização do trabalho e a desumanização das relações laborais na sociedade contemporânea. Como essa visão do trabalhador como "substituível" afeta a percepção do valor da profissão e a dignidade do indivíduo?
5 - O autor se "autoflagela" em sua crônica, buscando um "ato pedagógico" para que "ao menos um educador se enxergar neste espelho e ousar fazer diferente". Discuta a importância da reflexão crítica e da conscientização individual para a transformação social. Mesmo diante de um sistema opressor, como a ação individual e a resistência de um professor podem gerar pequenos, mas significativos, impactos no ambiente escolar e na vida dos alunos?
Numa sexta-feira, longe de casa, durante uma aula de Língua Portuguesa, aplicava a proposta pedagógica do dia: buscar, em um quadro de caça-palavras, valores humanos. Todas as palavras ocultas remetiam a atributos de um bom caráter. No entanto, entre gritos e desordem — o comportamento habitual daquela turma de sexto ano —, poucos conseguiram concluir a tarefa. Um dos alunos, absolutamente alheio à atividade, daqueles inquietos e provocadores que não param e perturbam a todos, empurrou algumas colegas para fora da sala, trancou a porta por dentro e, com escárnio, começou a gritar:
— Prossor, prossor, prossor, oia aqui, as mina tá fora da sala!
Aproximei-me dele. Com a voz de quem ainda preservava algum resquício de autoridade, chamei-o de vagabundo e o arrastei dali, puxando-o pelo braço. As meninas voltaram à sala, e ele saiu pisando duro, altivo, lançando ameaças de que me denunciaria à Secretaria de Educação. Na aula seguinte — eram dois períodos seguidos —, uma das meninas, talvez num gesto de gratidão ou solidariedade, mostrou-me a contracapa de um minidicionário escolar que circulava entre eles. Nela estava rabiscado: “Claudeci é viado” (sic).
No recreio, um colega — desses que fomentam a discórdia com prazer — comentou que o “fulaninho de tal” realmente me denunciaria. Outro aluno, querendo me intimidar, emendou:
— E os mininu aqui denuncia mermo!
Naquela aflição, tentei justificar a mim mesmo o uso da palavra “vagabundo”. Lembrei-me do episódio em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em rede nacional, chamou os aposentados de vagabundos. A palavra, então, ganhara um novo contorno, uma inesperada — e irônica — extensão semântica, pois o próprio FHC era um professor aposentado. Como deveriam reagir os aposentados diante de tal adjetivo? E o aluno, dito missionado? Para responder, proponho outra pergunta: quem matou Cristo? Foi o pecado. E não precisava ser o pecado do mundo inteiro. Se houvesse apenas um, ainda assim o Professor dos professores aceitaria a culpa, e esse único pecado já Lhe custaria a vida.
Sou eu o vagabundo que tentou transferir ao aluno a própria incompetência. E, mais do que isso, sou tão vagabundo que tirei tempo do “nada” para escrever esta crônica de autoflagelação — um espelho da minha prática docente. E vejam: já fui lotado em muitas escolas do município! Jogado de cá para lá, e de lá para cá. Não exatamente por ser incompetente, mas por ser vagabundo... talvez por trabalhar com a carga horária mínima.
Mas talvez o que mais assuste não seja o erro em si, e sim a consciência aguda dele — essa ferida que sangra, mas também cura. O que vivi naquele dia não é apenas uma falha isolada, mas o retrato de uma profissão vulnerável, onde cada gesto carrega o peso de décadas de abandono institucional e afetivo. Reconhecer a própria impotência não é um ato de fraqueza, mas de humanidade. E escrever esta crônica é, no fundo, um ato pedagógico: não para me absolver, mas para acender alguma fagulha em quem ainda resiste à indiferença. Se ao menos um educador se enxergar neste espelho e ousar fazer diferente — mesmo de mãos trêmulas —, talvez algo em nós sobreviva à mordida da serpente.
Conta-se a história de um jardineiro, na Índia, que trabalhava no campo quando foi mordido por uma das serpentes mais venenosas do mundo. Ele sabia que não havia antídoto para aquela peçonha. Sabia também que, mesmo que houvesse, não teria tempo de buscá-lo. Em poucos minutos, o veneno atingiria seu sistema nervoso central. Sem hesitar, apoiou o braço no tronco de uma árvore, brandiu o facão e decepou a própria mão. Seus gritos ecoaram pelo campo, e seus companheiros correram para estancar o sangue. Concluíram que sua ação imediata e decisiva salvou-lhe a vida.
O título desta crônica já me pune o suficiente. Mas quem se importa se um professor decepar a própria mão ou perder a moral? Afinal, quando um morre, outro já ocupa, sem alarde, o seu lugar funcional.
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O texto que acabamos de ler nos traz uma narrativa forte e tocante sobre a realidade do dia a dia de um professor. O autor nos leva para dentro de uma sala de aula, nos faz sentir a frustração, a raiva e a reflexão sobre o papel do educador em meio a tantos desafios. Ele aborda não só a indisciplina dos alunos, mas também a própria autoavaliação e a vulnerabilidade da profissão. Para a Sociologia, esse texto é riquíssimo! Ele nos permite discutir temas como instituição escolar, relações de poder na sala de aula, desvalorização docente, violência simbólica, condições de trabalho do professor, e o impacto das políticas educacionais e do contexto social no ambiente escolar. Vamos mergulhar juntos nessas ideias e aprofundar nosso olhar sociológico!
1 - O autor descreve a cena de indisciplina em sala de aula e a sua reação ao chamar o aluno de "vagabundo". A partir da Sociologia, discuta as relações de poder que se estabelecem no ambiente escolar entre professores e alunos. Como a indisciplina pode ser entendida como uma forma de contestação ou expressão de conflitos sociais presentes na escola?
2 - O texto menciona que o professor, ao justificar o uso da palavra "vagabundo", lembra-se de uma fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Analise sociologicamente como o uso da linguagem e de termos como "vagabundo" por figuras de autoridade (seja um professor ou um político) pode carregar conotações sociais e preconceitos, refletindo e reproduzindo estigmas em diferentes contextos.
3 - O autor descreve a profissão docente como "vulnerável" e fala sobre o "abandono institucional e afetivo" que a cerca. Do ponto de vista da Sociologia do Trabalho, quais são as condições de trabalho dos professores na educação básica no Brasil? Discuta como fatores como a baixa remuneração, a violência escolar e a falta de reconhecimento podem impactar a saúde mental e a prática pedagógica desses profissionais.
4 - A crônica toca na ideia de que "quando um morre, outro já ocupa, sem alarde, o seu lugar funcional". Relacione essa afirmação com o conceito de precarização do trabalho e a desumanização das relações laborais na sociedade contemporânea. Como essa visão do trabalhador como "substituível" afeta a percepção do valor da profissão e a dignidade do indivíduo?
5 - O autor se "autoflagela" em sua crônica, buscando um "ato pedagógico" para que "ao menos um educador se enxergar neste espelho e ousar fazer diferente". Discuta a importância da reflexão crítica e da conscientização individual para a transformação social. Mesmo diante de um sistema opressor, como a ação individual e a resistência de um professor podem gerar pequenos, mas significativos, impactos no ambiente escolar e na vida dos alunos?


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