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MINHAS PÉROLAS

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

NEM CÂNCER, NEM CORONAVÍRUS CONSEGUIRAM POR ORA ("Deus é um desespero que começa onde todos os outros acabam." — Emil Cioran).



 

NEM CÂNCER, NEM CORONAVÍRUS CONSEGUIRAM POR ORA ("Deus é um desespero que começa onde todos os outros acabam." — Emil Cioran)

Por Claudeci Ferreira de Andrade

Estou com uma cicatriz vertical na barriga — resultado de uma facada simbólica, em solidariedade ao presidente Bolsonaro, embora em contextos totalmente distintos. A minha, feita por um profissional, foi a porta de entrada para a remoção do câncer no intestino. Ainda assim, queria ter certeza de que não foram vocês — os olhares, os silêncios, os desgostos — a motivação para que a inflamação se tornasse tão agressiva. Por tanto tempo estive negligente, alheio ao próprio corpo, até que fui despertado por uma anemia severa. O alarme soou: sangue nas fezes. Procurei um médico, e a biópsia confirmou o diagnóstico — "Adenocarcinoma", localizado na vertical do intestino grosso direito. Era o início de uma jornada dolorosamente consciente. "Ah, mas é um tipo comum, tem tratamento!", disseram. Tratamento que consistia em uma cirurgia (colectomia) e um rigoroso ciclo de quimioterapia. No meu caso, doze sessões, cada uma com um infusor por 48 horas, completando o ritual terapêutico. Mesmo sendo uma bombinha diferente a cada sessão, confesso: apaixonei-me por elas.

Minhas relações sociais ruíram. Afastei-me do trabalho — sou professor concursado da rede estadual — e, com isso, vieram os burburinhos. Alguns poucos colegas lamentavam, solidários à dor; outros tantos respiravam aliviados, pois o crítico incômodo do sistema educacional parecia prestes a se calar.

Os efeitos colaterais me impediam de pensar com clareza, mas não deixei de ler e escrever. Pela internet, buscava formas de amenizar os sintomas. Para desintoxicar o fígado e abrir o apetite, tomava Silimalon. Era reconfortante sentir fome novamente. O chá de canela aliviava as náuseas; o açafrão, as dores nas articulações e o cansaço nas pernas. A boca queimada, a mucosa dormente, o desvio de paladar — combati tudo com glutamina. Para conter a queda de cabelo, recomendaram alimentos ricos em zinco e cobre, e assim aumentei o consumo de carnes vermelhas e brancas, sempre cozidas. Evitava bebidas quentes ou geladas, pois provocavam choques térmicos, como se eu fosse feito de fios desencapados. Água era essencial, mas não me apetecia. Venci essa aversão com suco de cebola — e, assim, reaprendi a beber, por dentro e por fora.

Minha alegria era ouvir das pessoas que eu nem parecia doente. O espanto delas me fazia mostrar, com um misto de vaidade e exaustão, a cicatriz na barriga e o cateter implantado no ombro direito — prova de que nada disso era em vão. Uma nutricionista do Cebrom recomendou um suplemento da Nestlé (Impact), e ganhei alguns quilos. Com eles, vieram a aparência de bem-estar e uma performance mais convincente. Após dois meses de Noripurum Fólico, a anemia desapareceu por completo. As plaquetas ainda estavam baixas, comprometendo minha imunidade, mas contornei isso com mel, geleia real e pólen. Curiosamente, nem gripe tive. Apesar de estar no grupo de risco — idoso, imunossuprimido e em tratamento —, uma tomografia revelou que meus pulmões estavam seriamente comprometidos, porém sem nenhum outro sintoma de COVID-19. Acredito que os corticoides, usados contra as reações alérgicas à quimioterapia, deram conta do recado.

Não bastasse o corpo ferido, os fantasmas que me visitam agora não são os da morte, mas os da dúvida — mais traiçoeiros, mais silenciosos. Eles sussurram no escuro: "E se tudo voltar?", "E se nunca tiver ido?". Esses espectros psíquicos, que se alimentam da espera, me encontram desprevenido, desarmado, sem os manuais da fé que antes me sustentavam. A cicatriz que carrego virou cicatriz também na alma: lembro que fui forte, mas não sei se ainda sou. Refaço exames, mas o medo que me invade não cabe em laudos. Porque sobreviver, às vezes, cobra mais caro que adoecer.

No dia 30 de março, seis meses depois, recebi a última aplicação da quimioterapia. Agora começa a maratona de exames que comprovarão, ou não, minha cura. E com ela, voltam os fantasmas. Psicologicamente, não estou pronto para enfrentá-los de novo. Medo, insegurança, desconfiança. Quero a cura confirmada. Por isso, farei todos os exames recomendados. Que a doença saia de mim — e eu dela. E, apesar de tudo, valeu pela experiência.

"Pois Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio." (2 Timóteo 1:7).


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O texto que acabamos de ler nos oferece uma perspectiva muito pessoal e dolorosa sobre a experiência de um professor com o câncer. Embora seja uma história individual, ela nos convida a refletir sobre questões sociais importantes que a Sociologia estuda. Com base nisso, preparei cinco questões discursivas para pensarmos juntos.

1 - O autor compara sua cicatriz de cirurgia com uma "facada simbólica" em solidariedade a um presidente. Qual é o papel dessa simbologia na forma como ele interpreta sua própria experiência de doença?

2 - Ao falar sobre os colegas de trabalho, o autor menciona que alguns lamentavam e outros "respiravam aliviados". De que forma esse trecho revela como as relações sociais e o ambiente de trabalho podem ser marcados por conflitos e diferentes interesses?

3 - Durante o tratamento, o autor enfrenta a "culpa" de ter sido negligente com o próprio corpo. Explique como a sociedade contemporânea, com sua ênfase na saúde e no autocuidado, pode gerar sentimentos de responsabilidade individual em relação às doenças.

4 - O autor descreve como a doença afetou suas relações sociais e seu trabalho. Usando esse exemplo, analise a interdependência entre a saúde do indivíduo e sua participação nos diferentes grupos sociais.

5 - O texto termina com a ideia de que os "fantasmas" da dúvida são mais traiçoeiros que a morte. Discuta como a luta do autor contra o medo e a incerteza pode ser vista como um reflexo de como a saúde mental se torna um desafio central na vida contemporânea.

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